FFOBS - The Queen's Gambit, por Pâms

Majestade

Porto Alegre, 2015
Campeonato Estadual de Xadrez

Para as garotas da minha turma, não era normal uma menina ser tão obcecada por xadrez, para minha família era uma questão de legado. Depois que meu tio Giovanni aos vinte anos, se tornou um Grande Mestre em 1998 e o esporte se tornou o assunto principal em todos os eventos dos Vescovi. E de toda geração que nasceu após essa conquista, a única que herdou tamanha paixão pelo tabuleiro, foi a menos provável: eu mesma. Em meio a dez primos, os olhos que brilharam foram da única garota da turma.

O que deixou meu tio ainda mais chocado.

— Vamos lá, , é só mais uma partida. — disse ao me olhar no espelho mais uma vez, observando as gotículas de água ainda escorrendo pelo meu rosto.
— ?! — a voz de Olívia soou da porta — Está tudo bem?
— Está sim. — voltei meu olhar para seu reflexo — Só precisava de dois minutos.
— Ok, estamos te esperando. — disse ela, assentindo, dava para ver o nervosismo em seu olhar — A equipe toda está ansiosa.
— Eu também, mas vamos ganhar. — assegurei, me voltando para ela com o olhar seguro e sereno — Confio em nosso time.
— Não é como se fosse, garotas versus garoto. — brincou ela, dando uma risada para descontrair.
— Bom, eles nos provocaram e nos desafiaram. — a lembrei.

Aquele dia seria como um divisor de águas em minha vida.
Primeiro, porque teria a chance exclusiva de derrotar o segundo melhor jogador júnior do país: Daniel Koblova, um descendente que se achava russo legítimo. Segundo, ganharia uma aposta. E terceiro, provaria para todos mais uma vez, que uma garota pode sim jogar contra os garotos e vencê-los com facilidade. Era um fato que já estava cansada de todo ano ouvir os comentários maldosos e humilhantes de Koblova e seus amigos Igor e Júlio, sobre meninas jogarem xadrez.

Contudo, antes de contarem sobre a tal aposta…

Vamos voltar ao meu primeiro contato com o esporte. E como disse, meus olhos brilharam pela primeira vez quando fiz dois anos de idade e vi meu primo Fernando ganhar seu único tabuleiro de xadrez, no aniversário dele. E quando eu digo único, é porque foi bem óbvio a falta de interesse dele pelo presente, quando deixou o tabuleiro jogado no chão e saiu correndo para brincar com a bola que ganhou da sua madrinha.

Não foi à toa que eu roubei dele no final da festa e escondi por longos anos no fundo do meu guarda-roupa. Ver o tio Giovani jogando contra o vovô Bruno, enquanto lhe explicava suas jogadas especiais, foi o ápice de todas as reuniões em família. E sim, eu aprendi observando meu tio jogar e lendo nos muitos livros que tinha na estante do vovô. Talvez pela decepção dele dos dez sobrinhos rejeitarem o esporte, que tio Giovani nem mesmo deu-se o trabalho de me perguntar se eu queria aprender com ele.

Então, todas as noites antes de dormir, eu treinava sozinha no tabuleiro roubado de Fernando, as partidas que memorizava nas festas de família. O susto veio aos meus nove anos, quando pedi à minha mãe para competir no Campeonato Regional na categoria até 12 anos. Primeiro, ela riu de mim, depois ficou séria quando percebeu que eu não estava brincando e tinha juntado dois anos da minha mesada para pagar a taxa de participação.

— Esta é a nossa primeira vez participando do Xadrez Absoluto. — comentou Olívia, ao sairmos do banheiro — Nunca enfrentamos os garotos juntos, só você no ano retrasado e nem ganhou.
— Eu não ganhei porque fiquei doente e não pude participar das últimas partidas. — me expliquei, mostrando a ela que era sim possível — Depois, fui proibida de jogar por mais um ano.

Pais. Isso me deixou em plena revolta.

— Olha só, quem veio apenas para perder. — Igor, o pior jogador do grupo rival, se colocou em nossa frente com um sorriso debochado.
— Esse é um adversário que você vence com 5 jogadas. — comentei com Olívia, devolvendo o olhar de deboche.

Minha amiga riu baixo.

— O que você disse? — Igor deu um passo para frente, tentando me intimidar.
— Isso mesmo que você ouviu. — continuei com meu olhar seguro e firme.
— Não deveria estar se apresentando para seu jogo? — uma voz rouca e grossa soou atrás de mim.

Era ele, o garoto que fazia meu coração acelerar sempre que o via jogando, considerado o rei das peças pretas, por sempre preferir jogar com elas, usava a Abertura Italiana invertida, afinal era uma jogada para ser utilizada com as brancas, mas de alguma forma ele conseguia fazer isso com as pretas, sem se importar com a jogada inicial do seu oponente. E isso era a facada inicial no coração dos seus adversários. O atual enxadrista número 1 do Brasil, que conquistou seu título de Grande Mestre há sete anos atrás, quando completou 15 anos. Ele sim tem sangue de russo, Koblova, o irmão mais velho do meu arqui-rival.

— Eu já estava indo para lá. — disse Igor, tentando se explicar, já afastando de nós.
— Espero que não seja derrotado até a nossa partida. — brinquei rindo de leve.
— ?! — Olívia me cutucou, com vergonha de ter um GM próximo de nós.
— E vocês duas não tem uma partida agora? — a atenção dele voltou-se para nós.

Eu assenti com a cabeça, tentando não encará-lo demais, porém sem sucesso. Já sentia meu coração acelerado.

— , vamos, estão nos chamando. — informou Olívia já me puxando para irmos.
— Espero que não decepcione este ano… — disse ele, num tom mais alto, me fazendo parar e olhá-lo.

Um sorriso de canto formou disfarçado no seu rosto. Atualmente, nossos embates eram mais em olhares e números de vitórias, claro que a vantagem era sempre dele, por ter iniciado a carreira antes e eu ter jogado boa parte no torneio feminino. Contudo, seu nome estava no topo da minha lista de rivais que eu desejava derrotar.

— Te vejo no campeonato nacional. — finalizou ele, dando uma piscada e dando meia volta e seguindo para a direção do irmão.

Se aquilo foi um truque para tirar minha concentração. Ok, ele conseguiu. Entretanto, foi o gatilho que precisava para me dar ainda mais confiança. Se ele aparentemente estava torcendo para me ver no próximo ano, automaticamente me via como uma adversária à altura. O que me deixava ainda mais motivada.

Contudo, voltando a nossa aposta…

Aconteceu no ano passado, com meu retorno aos jogos após recuperar minha saúde. Minhas duas amigas haviam ganhado na categoria feminina, e eu, em último lugar no Absoluto, por ter desistido. Enfim, quando o assunto é saúde, não há o que fazer. Foi no acampamento de xadrez no verão passado que esbarrei pela primeira vez em Daniel, eu havia derrotado um de seus amigos na minha primeira partida no Xadrez Absoluto. Ele me desafiou no último dia do acampamento, foi minha segunda derrota e muito significativa, o que me frustrou bastante e me fez repensar minhas estratégias.

Eu declarei que o venceria na próxima, então ele disse que xadrez não era para mulheres. Foi então que fizemos uma aposta, eu e minhas amigas venceríamos ele e seus amigos no próximo ano, participando da categoria deles. Eu já estava mesmo revoltada de sempre competir apenas na categoria feminina e inspirada em Judit Polgar, a melhor enxadrista da história, encarei o desafio de passar um ano treinando com Olívia e Bruna, para nosso triunfo em 2016.

Cheguei ao primeiro oponente, Charles Oliveira. Me sentei na cadeira em sua frente e respirei fundo para voltar a concentração, jogando com as pretas, o esperei dar o primeiro movimento para entrar com a minha Defesa Siciliana, minha favorita. Foram precisos nove lances para derrotá-lo e quando voltei meu olhar para minhas amigas, Olívia tinha ganhado do enxadrista João Pedro; já Bruna, por uma má estratégia havia empatado com o arrogante Igor. Passamos para a próxima fase, e mais uma vez consegui vencer com facilidade. Olívia também havia empatado desta vez com Júlio.

— Aqui estamos. — disse ao me colocar frente a frente com Daniel.
— Pronta para perder? — disse ele, com aquele olhar confiante que não me assustava.

Discretamente eu desviei meu olhar dele, para seu irmão que estava atrás nos observando. Aquela sim era a minha meta atual, no auge dos meus 15 anos, eu definitivamente me tornaria uma Grande Mestre este ano e em 2017 derrotaria o excepcional Koblova.

— Estou pronta para te fazer engolir sua rainha. — assegurei a ele, certa de minhas palavras.
— É o que veremos.
— Partida entre Daniel Koblova e Martins. — disse o árbitro, anunciando nossa partida.

Assim que o homem deu o sinal positivo, Daniel fez sua primeira jogada com o peão do rei na e4, uma jogada comum para quem quer liberar o bispo do rei e a rainha. Eu já tinha estudado todos os jogos dele, sabia quase de cor como aquele maxista pensava e o faria surtar com minha estratégia.

— Você é louca? — disse ele, assim que sacrifiquei o peão da minha rainha — Isso é uma jogada de peças brancas.

Xeque, meu caro. Não é somente Koblova que sabe inverter jogadas. Afinal, minha especialidade era fazer o gambito da rainha com as peças pretas, só para fazer uma abertura sólida e deixar meu oponente desnorteado, então iniciaria minha versão de Defesa Siciliana. Eu precisava ter o domínio do centro do tabuleiro e o teria por bem ou por mal, não tinha medo de me arriscar, menos ainda de perder peças, se fosse necessário, sacrificaria até mesmo minha rainha na d3, para que minha torre tivesse a chance de encerrar o jogo com apenas 7 movimentos.

Eu pisquei de leve para ele, abrindo um sorriso nebuloso e debochado.

— Xeque mate. — disse ao terminar de fazer minha jogada.

Meu olhar voltou-se novamente para seu irmão atrás acompanhando cada jogada. Ocultamente seu olhar me transmitia a mensagem: Mal posso esperar pelo próximo ano.

I'm into that, I'm good to go
I'm diamond, you know I glow up.
- Dynamite / BTS

“Coragem: A única forma de vencer é nunca desistindo.” - Pâms

FIM?!

Nota da autora:
Bom dia gente. Olha eu aqui no desafio, aos 45 do segundo tempo e surtando pra fazer uma maratona de TQG na Netflix. Espero que tenham gostado, em breve mais.
Bjinhos...
By: Pâms!!!!
Jesus bless you!!!

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