Abertura Escocesa
Glasgow, outono de 2015
E quando eu penso que nesta minha vida de enxadrista nada mais será surpreendente, eis que sou convidada por um amigo a uma vista não planejada, apenas para relembrar os velhos tempos. Após finalizar as partidas de Londres e quase me derreter em lágrimas para Ricardo Neves, o responsável pela equipe feminina de xadrez brasileira, consegui uma pequena autorização para desviar minha rota e visitar um amigo nas Terras Baixas de Glasgow, na Escócia.
Como conheci alguém tão distante assim? Foi há dois verões atrás, durante o campeonato nacional de xadrez feminino em Florianópolis que o vi pela primeira vez. Grant, de sorriso simples, porém memorável e um olhar cativante, na época um formando do ensino médio escossês que estava em meio a um intercâmbio no Brasil e ficou sabendo sobre o evento que acontecia na biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina. Foi engraçado e ao mesmo tempo irritante, quando ele entrou atraindo a atenção das garotas que controlaram a euforia, porém rendendo muitos cochichos que quase me desconcentrou. Contudo, o que importou para mim é que no final daquele dia, me tornei a campeã pelo terceiro ano consecutivo, e após o cumprimentos de toda a comissão, fui apresentada a ele por um dos coordenadores que o tinha convidado.
Grant estava na lista dos cinco melhores de seu país, um Grande Mestre, isso sim me chamou mais atenção do que aqueles olhos verdes profundos e observadores que me deixaram constrangida. Bastou uma partida com direito a derrota esmagadora, que me fez parecer uma criança diante de um vencedor convicto, para iniciarmos uma amizade interessante, que perdurou todos esse tempo sendo consolidada através das nossas conversas pelo whatsapp e vídeo-chamadas pelo discord.
Agora, estava eu descendo do táxi em frente ao dormitório de sua universidade. Nas muitas conversas que tivemos, por três vezes anunciou que estava trocando de curso, por estar mais perdido que cego em tiroteio quando o assunto era planejamento para o futuro. A única coisa que sabia era do seu amor pelo xadrez, o que mais me admirava.
— Finalmente, brasileira. — disse ele, com um largo sorriso de recepção — Porque será que eu já imaginava que você se atrasaria, típico de um brasileiro.
— Olhe como fala do meu povo, escocês, só um brasileiro pode falar mal do outro. — reclamei o repreendendo — Além do mais, eu cheguei no horário, foi o taxista que errou o caminho. Por acaso os escoceses não possuem senso de direção?
— Mais respeito, que você está no meu país agora, e só um escocês pode falar mal do outro. — brincou ele, roubando minha fala.
Nós rimos um pouco e me ajudou com as malas. Teoricamente, eu deveria me instalar em um hotel, porém como este desvio não estava no roteiro, a Federação se opôs a pagar e teria que sair do meu bolso minha estadia em Glasgow. Contudo, quando sentem um amigo de verdade, as coisas facilitam e Grant conseguiu um dos quartos vagos próximo ao dele no prédio do dormitório. Uma cortesia da universidade ao aluno mais rentável para eles.
— Obrigada por abrigar essa turista indefesa. — disse num tom dramático, fazendo-o rir.
Era intrigante o fato dele sempre rir com minhas palhaçadas, afinal, já tinha ouvido que os escoceses eram sérios e frios. definitivamente é uma exceção à regra.
— Muitos alunos se mudaram esse semestre e alguns quartos ficaram vagos. — explicou ele — E como você vai ficar dois dias apenas, não tem problema.
— Muito obrigada mesmo. — disse a ele, com o olhar grato, enquanto o seguia até o elevador — Eles só liberaram a verba para a passagem, a federação nem ligou se eu ficaria na rua.
Ele riu novamente.
— Não ria, é sério.
— Eu jamais te deixaria na rua. — afirmou ele, num tom mais sério — Só precisa me prometer que não vai colocar fogo no quarto.
Brincou no final, eu fiz uma careta para seu reflexo no espelho e ri depois. Assim que me instalei no quarto, logo pedi a ele para darmos uma volta pelas redondezas. Como disse, eu só tinha dois dias e precisava aproveitar ao máximo.
— E então fiquei ainda mais revoltada. — disse enquanto caminhávamos, ao contar novamente minhas frustrações sobre o campeonato, agora com riqueza de detalhes.
— Olhe pelo lado bom, pelo menos você venceu o Koblova caçula. — comentou ele, demonstrando empatia — Mesmo que não tenha se classificado para participar do Campeonato de Xadrez Absoluto Internacional.
— Às vezes não consigo ver com esse ângulo, mas e você? — o olhei de relance, conseguindo notar seu olhar em mim, então parei de caminhar quando chegamos a praça do Campus — Achei que o veria em Londres quando chegasse, mas não o vi.
— Desisti de participar. — ele parou em seguida, mantendo seu olhar profundo em mim — Parte boa de ser um Grande Mestre.
— Por que desistiu?
— Perdi a motivação, quando me disse que jogaria apenas no xadrez feminino. — comentou ele — Ainda desejo uma partida oficial contra você.
— Saiba que na oficial eu não vou perder. — o alertei.
— Estou contando com isso. — ele sorriu de canto, aquele sorriso que sempre fazia para mim, quando eu estava triste.
Não era difícil decifrar os olhares de , era um tanto óbvio seu interesse por mim, principalmente pelas raras vezes que voltou ao Brasil para me visitar e nem mesmo deixou-se levar pelos suspiros das universitárias que frequentavam a biblioteca da federal por sua causa.
Não era difícil decifrar os olhares de , era um tanto óbvio seu interesse por mim, principalmente pelas raras vezes que voltou ao Brasil para me visitar e nem mesmo deixou-se levar pelos suspiros das universitárias que frequentavam a biblioteca da federal por sua causa.
— Então, mudando de assunto. — eu desviei meu olhar, um pouco envergonhada — Além de mudar novamente de curso, o que mais de interessante você fez este ano?
— Arrumei um estágio. — contou ele, indo até um banco próximo e sentando primeiro.
— Você, trabalhando? — eu soltei uma gargalhada maldosa e me sentei ao seu lado — Grant, onde está a pessoa que disse que viveria do xadrez?
— Está economizando para comprar sua cobertura com a melhor vista da cidade. — ele desviou seu olhar de mim para o canteiro de flores à frente, que mesmo no outono estavam bonitas.
— Olha só quem deseja independência. — brinquei rindo.
— Morar na universidade é legal, mas ainda assim tem regras. — explicou ele, num tom frustrado — Se for para ter liberdade, quero tê-la por completo.
— Hum... Tem planos de levar as garotas para sua casa. — eu ri, voltando meu olhar para ele, a fim de ver sua reação.
— Apenas uma. — seu olhar veio de encontro ao meu.
O que novamente me deixou constrangida de tamanha intensidade.
— Mas acho que seja mais prudente não estragar a amizade. — completou ele, disfarçando o olhar triste, jogando a indireta.
— Que tal uma partida? — disse desviando meu olhar para minha bolsa transversal, para suavizar o clima e retirei meu mini tabuleiro e o apoiei entre nós dois no banco.
Não me contive em lembrar das inúmeras partidas de xadrez rápido, que joguei em um curto espaço de tempo contra Dimitri na melhor cafeteria de Londres, perdi a conta de quantas derrotas obtive naquele dia, até que finalmente me acostumei com a agilidade que precisava ter. E se...
— Alguma vez já jogou xadrez rápido? — perguntei a ele.
— Está me desafiando para perder mais um pouco para mim? — retrucou ele, com o olhar confiante.
— Eu aprendi recentemente em Londres e confesso que sou bem habilidosa. — depois de muitas derrotas, é claro — Você pode se surpreender.
— Vamos lá, então. — disse ele, virando seu corpo para ficar de frente para mim.
Um encontro nosso sem uma partida de xadrez, não é um encontro nosso! Aquele tabuleiro além de ser um amigo em comum, era nosso ponto de partida para inúmeras conversas aleatórias, risadas e alguns desabafos. E sendo honesta, uma partida com meu melhor amigo ao vivo, era mil vezes melhor do que jogar online pela minúscula tela do computador.
— Xeque. — disse ele, próximo de mais uma vitória ao colocar sua torre de frente para minha rainha.
Havia um peão seu nos separando, e com o bispo pronto para matá-la e abrir caminho para a torre, eu não conseguia entender como ele tinha conseguido fazer isso.
— Você tem usado a mesma jogada há quatro partidas. — reclamei sem entender como eu permiti o jogo chegar naquela situação.
— E você me deixou passar em todas elas. — comentou ele, com um sorriso de canto.
— Eu te odeio. — disse um tanto revoltada com aquele sorriso.
— E eu te amo. — sua voz soou com tanta naturalidade que quando ele percebeu o que tinha falado, seu rosto corou um pouco fazendo-o se sentir envergonhado — Quer dizer...
Ele pareceu ainda mais sem jeito, me fazendo rir.
— Eu ainda vou te vencer um dia, pode apostar. — jurei com convicção de minhas palavras.
— Vamos. — disse ele ao se levantar — Está ficando tarde.
— Mas nem terminamos. — questionei voltando o olhar para o tabuleiro.
— Claro que terminamos, eu venci. — disse ele.
— Não venceu não, meu rei ainda está de pé. — retruquei.
Ele riu e fez dois movimentos rápidos, uma com minha rainha capturando o seu peão e a outra com seu bispo aniquilando ela sem piedade. Então moveu minha única torre para a e4, mexendo sua torre em seguida, deixando meu rei desprotegido e sem saída.
— Xeque-mate. — disse ele — Venci.
— E como sabe que eu faria minha rainha capturar seu peão para depois ser devorada pelo bispo? — indaguei.
— Porque todas as suas outras peças estavam presas, e dei passagem para sua torre, porém minha teia de aranha já estava pronta desde a minha segunda jogada quando poderia ter capturado meu peão e o deixou passar ambicionando pegar o meu cavalo. — sua forma tão serena de explicar me deixava fascinada.
— Então eu tinha uma forma de ganhar? — perguntei.
— Sim, se tivesse usado sua rainha com sabedoria. — ele tomou impulso para se afastar do banco, seguindo na frente — Você não percebeu, mas depois que eu fiz minha abertura escocesa, fiz uma variante da Defesa Siciliana com você duas jogadas à frente.
— Você usou a minha defesa favorita contra mim? — me mostrei indignada.
— Sim. — ele piscou de leve e riu segundo na frente — Está com fome? Eu pago o jantar.
Minha mente levou alguns minutos para processar toda informação, e lidar com aquela piscada final ao mesmo tempo. Se esse atrevido não fosse meu amigo, talvez... Não, nada de se apaixonar por enxadristas de olhos verdes e sorriso atraente.
Os dois dias que seguiram passaram rápido, e quase chorei quando me deparei novamente na sala de embarque do aeroporto. O lugar estava parcialmente vazio, e um pouco frio. ficou as duas horas de espera comigo, jogando mais algumas partidas de xadrez rápido. Até que chegou o momento da despedida.
— Valeu a pena meu desvio até a Escócia. — admiti com um sorriso singelo ficando de frente para ele, ao lado da vidraça da fachada — Estava mesmo com saudade de jogar contra você.
— Admita que estava com saudade de perder para mim. — brincou ele.
— Claro que não. — franzi a sobrancelha, ficando séria, depois ri juntamente com ele.
— Quando te verei novamente? — perguntou ele, suavizando o olhar.
— Provavelmente em uma vídeo-chamada assim que eu chegar em Berlim. — respondi prontamente.
— Digo, ao vivo. — explicou ele.
— Não sei. Você pode ir me ver ganhar no campeonato nacional do ano que vem. — sugeri.
— Atenção senhores passageiros do voo 592, favor dirigir-se ao portão de embarque. — a voz da atendente soou pelo alto-falante.
— Minha vez de ir. — anunciei dando um passo para trás — Até a próxima partida.
Assim que dei impulso para me afastar, em um movimento rápido e não sei se foi involuntário, mas pegou em minha mão e me abraçou apertado, me deixando estática.
— , eu sei que sua preferência sempre será pelo russo, mas... — ele começou a sussurrar, causando ainda mais confusão em minha sanidade mental, que já não tinha forças para lidar com seu perfume em meio aquele abraço — Quero que saiba que é a única garota capaz de tomar o lugar do xadrez em meu coração.
Antes que eu pudesse reagir a tal declaração, os lábios de Grant tocaram os meus de forma doce e envolvente. Senti um frio na barriga com a aproximação do seu corpo, e o toque das suas mãos em minha cintura. Meu coração nunca acelerou de uma forma tão rápida quanto esta, e nem mesmo sabia o que fazer já que este era meu inesperado primeiro beijo. Apenas mantive meus olhos fechados permitindo a continuidade, sem nem mesmo me importar com nossa fatídica diferença de idade.
E para o meu primeiro beijo, até que este escocês me surpreendeu.
It’s the love shot.
- Love Shot / EXO
“Coragem: A única forma de vencer é nunca desistindo.” - Pâms
FIM?!
Bom dia gente. E vamos de mais um pouquinho de xadrez, porque a maratona de TQG na Netflix vai demorar pra sair. Espero que tenham gostado, em breve mais.
Bjinhos...
By: Pâms!!!!
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