Finalizada em: 15/04/2021

Capítulo único

James tinha todo o resto da noite planejado quando colocou a chave na fechadura da porta da frente da casa onde morava com a esposa, Kirstie. Depois de uma longa semana de trabalho puxado e tediosas horas no escritório, as noites de sexta-feira tinham ganhado um significado especial na vida dos recém-casados, e a mensagem provocativa de Kirstie no meio da tarde só tinha colocado combustível na ansiedade do rapaz.
Na festa de inauguração da casa nova, o casal e alguns amigos encheram uma caixinha com ideias de pequenos encontros e atividades românticas que eles poderiam usar quando o relacionamento começasse a cair na mesmice. Acabaram decidindo usar mesmo antes disso, e repetir as boas ideias, descartar as não tão interessantes e acrescentar outras ao longo do tempo. Foi assim que surgiram as sextas temáticas, o momento mais esperado da semana, que abria o final de semana no melhor humor possível. James mal podia esperar.
— Amor, cheguei! — gritou da porta.
— James, finalmente — Kirstie recepcionou o marido com um beijo rápido nos lábios, vestida com mais roupas do que ele imaginava encontrá-la e parecendo inquieta.
— Está tudo bem? — o rapaz perguntou, baixo, entrando na casa e observado ao redor.
Kirstie acenou com a mão, tranquilizando o marido.
— Sim, está. Bom, mais ou menos. Você podia ter me avisado que ele vinha.
James sentiu uma onda fria correndo do topo da cabeça às pontas dos dedos dos pés. Manchetes de noticiários começaram a lhe gritar nos ouvidos sobre golpes e crimes hediondos cometidos sem nenhum sinal de arrombamentos nas portas ou janelas por enganadores com histórias elaboradas.
Segurou a esposa pelos braços e olhou-a fundo nos olhos.
— Ele quem, Kirstie?
— Ora, o — respondeu, em tom de obviedade, assistindo o marido relaxar os ombros tensos e soltar o ar dos pulmões. — Quem você achou que fosse?
Colocando a mochila sobre um aparador ao lado da porta, James tirou os sapatos e foi até a cozinha, seguido da esposa. Precisava de um copo de água.
— Ninguém. Digo, literalmente ninguém. Não estava esperando o . O que ele está fazendo aqui?
— E eu vou saber? — Kirstie cruzou os braços e encarou o marido. — Ele chegou aqui com uma garrafa de whisky fechada nas mãos, James, e não parecia bem.
O rapaz bagunçou os próprios cabelos, pensativo. Que diabo estava fazendo em Birmingham sem avisar? E pior ainda: o que , que morava em Liverpool, estava fazendo na casa de James, em Birmingham, numa droga de sexta-feira à noite?
— Onde ele está?

O quarto de hóspedes do segundo andar fedia a álcool.
As duas malas grandes de estavam tombadas uma sobre a outra, e metade do conteúdo da garrafa havia desparecido. Parte estava, na verdade, espalhada pelo chão do quarto, enquanto o restante embriagava o rapaz jogado na cama. Os cachos castanhos cobriam os olhos da mesma cor, avermelhados tanto pelas lágrimas quanto pela bebida, e as bochechas igualmente rubras indicavam que só restava um resquício de sobriedade na mente perturbada. Mesmo assim, insistia em tentar usar o telefone que parecia ter vida própria, de tão agitadas que as mãos estavam.
James fechou a porta atrás de si, imaginando que o amigo já fosse se sentir suficientemente constrangido na manhã seguinte sem que Kirstie assistisse a tudo aquilo. Tratou de fechar a garrafa de whisky e tirar o celular de perto de , e reparou que o rapaz tentava fazer uma ligação. O número era impossível identificar, misturado com caracteres especiais e quase todas as letras do alfabeto. Tentando se manter paciente, James tirou os sapatos de , enfiou o amigo em uma roupa confortável e quente e colocou-o na cama.
manteve-se em silêncio todo o tempo, deixando que o recém-casado fizesse o que devia ser feito. Tomou os copos de água e a aspirina sem reclamar, escovou os dentes e se deitou. Mesmo sob o efeito da bebida, sabia que eventualmente James faria perguntas que ele não queria responder, mas depois de invadir a casa do rapaz e causar toda aquela dor de cabeça, devia ao menos uma explicação.

A pontada incessante na têmpora esquerda, junto com a pressão em todo o crânio, tirou às pressas da cama quente. Correu para o banheiro e esvaziou o estômago num impulso só, sentindo a boca amarga e o gosto forte do whisky. Que ideia idiota tinha sido aquela. Relembrando cada xingamento e palavra de autodepreciação que conhecia, ajeitou o quarto, pegou a garrafa de água na mesa de cabeceira e as malas, e saiu em busca de James.
Não se lembrava muito da casa onde estava. Tinha visitado o amigo somente uma vez, antes do casamento, quando a casa ainda nem estava completamente mobiliada. As fotos, os bibelôs, os livros e DVDs na estante da sala, tudo compunha o lugar com uma atmosfera que refletia um pouco de James e um pouco de Kirstie. Em alguns anos, refletiria também o resultado daquela união em forma de riscos nas paredes, brinquedos espalhados pela sala e o som de risadas e choros pela casa nos horários mais improváveis.
O cenário trouxe à tona planos e lembranças que não tinha mais o direito de revisitar. Tinha consciência de cada decisão e falha que o colocaram no lugar onde estava, de mãos atadas e coração pesado, mas saber disso não tornava as coisas mais fáceis de superar.
? — O rapaz virou-se, procurando James. Encontrou-o escorado à porta da cozinha, com um avental desenhado e uma espátula em mãos. — Vem comer. Fiz panquecas.
Na ilha no centro da cozinha, ao lado do prato colocado para ele, viu mais um copo de água e outra aspirina. A ideia de não sentir mais aquela dor de cabeça era ainda mais agradável do que o cheiro das panquecas de canela de James. Finalmente sentaram-se um de frente para o outro, e comeram em silêncio por alguns bons minutos. Quando James terminou a última panqueca e colocou os talheres cruzados sobre o prato, sabia que estava na hora de se explicar.
— Obrigado por ontem.
— Não precisa agradecer. Você é meu irmão, eu vou cuidar de você sempre que precisar — sorriu, agradecido, e James sorriu em retorno antes de dar lugar à expressão de confusão. — Eu só quero entender o que aconteceu. É difícil fazer você tomar uma cerveja com a gente, e você apareceu aqui ontem com... Eu fiquei preocupado, . Nem sabia que você estava em Birmingham.
— Eu não estava — admitiu. — Cheguei ontem à noite. Peguei a garrafa no pub e vim para cá. Eu devia ter ido para a casa do Tristan, me desculpa.
Falando ali, em voz alta, percebeu o quanto era óbvia a alternativa. Tristan era solteiro e, provavelmente, nem estaria em casa. tinha a chave do apartamento do amigo, só precisaria deixar um bilhete na geladeira avisando que estava no quarto de hóspedes para quando Tristan chegasse com a conquista da noite. Na noite anterior, porém, James foi a única pessoa que passou pela cabeça de .
— Também não precisa se desculpar. Olha, se você não quiser me contar, não tem problema — levantou as mãos, sinalizando que entendia a situação —, mas me diz, pelo menos, se está tudo bem.
não respondeu.
sabe que você está aqui, ? — James se sentia conversando com uma criança perdida. Ficou sem resposta mais uma vez, mas a tensão nos ombros do rapaz de cabelo cacheado não passou despercebida aos olhos do amigo. — Era para ela que você estava tentando ligar, ontem, não era?
não sabe de mais nada, James. Tem três meses que a gente não se fala. Ela foi embora — não tinha jeito menos doloroso de dizer isso. tentou controlar o nó na garganta, mas a voz quebrada mostrava que não tinha tido sucesso.
James jogou o pano que ainda carregava pendurado no ombro com força sobre a mesa, respirando fundo.
, eu não quero fazer você se sentir pior, mas a gente te avisou sobre el—
— Se isso aqui é culpa de alguém, a culpa é minha. Só minha, e não dela — devolveu, nervoso, encarando James nos olhos pela primeira vez. — Eu sei que vocês não se davam muito bem, James, mas a culpa é completamente minha. Eu fiz ela ir embora.
Com um aceno longo de cabeça, James recolheu os pratos e se levantou para colocá-los na lavadora de louças. Deu alguns minutos para que pudesse se recompor antes de retomar a conversa.
— Você é o cara mais honesto, leal e dedicado que eu conheço, . Não entra na minha cabeça que você tenha dado motivos para ela simplesmente ir embora.
— Eu não estava lá, James, quando ela precisava que eu estivesse. Quando eu prometi que estaria — passou as mãos, inquieto, pelo rosto e pelo cabelo caído na frente dos olhos. — Eu dei importância para as coisas erradas, e agora ela se foi.

—x—

— Oi, tudo bem? Aqui é a . Eu devo estar ocupada agora, mas deixa um recado que eu te ligo depois, ok?

observou a tela do telefone em silêncio.
Já tinha dois dias desde que voltara para Birmingham e, sendo honesto consigo mesmo, ele não tinha ideia do que estava fazendo. Passou os últimos três meses em Liverpool, no apartamento que costumavam dividir, até que a solidão foi grande demais para suportar sozinho. As últimas gravações do álbum que estava produzindo por lá foram bem abaixo do padrão que ele esperava, mas suficientes para finalizar o projeto e finalmente liberá-lo para voltar para a casa dos pais.
Não tinha tido mais notícias de . Não sabia onde ela estava, nem se estava bem ou se precisava de alguma coisa. Não sabia de mais nada.

— Oi, — tomou coragem e começou a falar. — Sou eu, . Eu... Eu sei que não devia te ligar, mas... Eu sinto muito, .
Respirou fundo, pensando.
— Eu fecho os olhos à noite, sabe, e fico lembrando daquele dia. Eu fui fazer as minhas malas para vir para Birmingham, e... Eu te falei que estou em Birmingham? Não, claro... Eu vim para cá tem uns dias, e quase não consegui colocar as minhas coisas nas malas. Aí eu lembrei que era você quem fazia isso quando a gente viajava, e lembrei daquele dia, de novo. Não sei como você conseguiu colocar tanta coisa no carro, acho que é um dom — riu, nervoso, e passou uma mão pelos cabelos tentando colocar a cabeça de volta no eixo. — Nada daquilo valeu a pena, . Nem contrato com gravadora, nem álbum, nem contatos... Custou um preço alto demais, e é tudo culpa minha.

—x—

Um ano e meio atrás

, apaga essa luz! — protestou com a voz arrastada pelo sono, enfiando o rosto nos travesseiros e cobrindo a cabeça com o edredom.
— Que luz, ? Eu só abri a janela — respondeu, rindo.
— Janela? — A garota levantou-se, de súbito. — Meu Deus, que horas são? Eu preciso trabalhar.
gargalhou, abraçando a namorada e levando-a de novo para a cama.
— Hoje é sábado, senhorita . Eu sei que você ama seus clientes, e os casos complexos, e os juízes bonitões, mas hoje você tem que se contentar comigo, mesmo — deu um beijo no rosto da moça, que tinha uma expressão adorável de realização.
— Os juízes não são bonitões, senhor , são setentões.
— Ah! Bom, se algum deles se parecer com o Harrison Ford, complica para o meu lado.
riu, puxando o namorado para um beijo. O rapaz não demorou a se desvencilhar das mãos de , entretanto.
— Espera aqui — sussurrou —, eu fiz uma coisa para você.
Curiosa, assistiu correr quarto afora. Ouviu alguns barulhos estranhos, um baque alto seguido de um “Ai!” sonoro de , e riu. Conforme o tilintar baixinho de metal contra o vidro se aproximava, a ansiedade no peito da mulher aumentava também.
— Olha — disse, entrando no quarto de costas e tentando esconder a surpresa que trazia —, eu não sou a Nigella, mas me esforcei, e espero que você não tenha uma intoxicação alimentar.
Virando-se, revelou a bandeja repleta de pães, bolos e frutas, além da jarra de suco e os sanduíches de queijo. Em um copo alto, três rosas amarelas, já que as vermelhas achava muito clichê.
! — não sabia a que reagir primeiro. — Meu amor, se você me causar uma intoxicação alimentar com um queijo quente, vou precisar te denunciar para as autoridades sanitárias.
riu, sacudindo os cachos ainda deformados pela noite de sono. Colocou a bandeja no colo da namorada e se ajeitou ao lado dela na cama, pegando um morango e levando à boca de , que deu uma boa mordida.
— Eu não ia querer que você passasse o dia no hospital, principalmente hoje.
— O que tem hoje? — A mulher perguntou, terminando de passar geleia em um pedaço de pão. encarou-a, descrente.
— Como assim, ? Esqueceu que dia é hoje?
observou o namorado de canto de olho, mordendo lentamente o pão e disfarçando uma risada.
— Eu não acredito! — exclamou, jogando os braços para cima e balançando a cabeça para os lados. A namorada não aguentou e riu, quase se engasgando com a comida. — Mas, como eu sou um namorado dedicado, nosso aniversário não vai passar em branco.
Puxando uma caixinha de trás do travesseiro, entregou o presente à , que estava imóvel. Com a respiração travada, pegou o objeto de veludo azul e abriu devagar, revelando um relógio de pulso dourado com as iniciais dela gravadas no verso.
— Ainda não estou te pedindo para ser a Senhora , mas só porque nós combinamos de comprar nossa casa, primeiro — o rapaz observou, em voz mansa, e concordou com a cabeça. Não tinha muito mais que ela pudesse fazer, estava hipnotizada pelo relógio.
— Eu amei, ! Eu... Eu não comprei nada para você, eu esqueci completamente que era hoje, e—
! — Segurou o rosto da namorada com as mãos, delicadamente, e fez com que ela o olhasse nos olhos. — Você está aqui. Esse é o maior presente que eu poderia querer.
Antes que pudessem perceber, estavam embolados sob os cobertores, aproveitando o calor dos corpos e demonstrando todo o afeto que sentiam um pelo outro.

—x—

Presente

limpava o balcão do pub mais uma vez. Já era a quarta vez naquela noite que um cliente derrubava a bebida ali, e na segunda já estava suficientemente irritado. O barulho do falatório, o cheiro do álcool, o zumbido das máquinas, tudo isso ecoava na cabeça do rapaz tão insuportavelmente quanto uma goteira na calha depois da chuva. O pub era, normalmente, um refúgio para : bendita foi a hora que resolveram começar o negócio familiar. Foi lá que ele começou a tocar e ganhar reconhecimento pela música antes da oportunidade de fechar contrato com uma gravadora grande em Liverpool.
Ainda se lembrava em detalhes vívidos da noite em que o caça-talentos da Crystal Clear Studios entregou-lhe um cartão de visitas, anunciando que o grupo Lahey estava abrindo uma filial inglesa e dizendo que “seria um prazer receber você lá, rapaz”. havia comemorado mais do que ele próprio, e partiu dela a ideia de mudarem-se para Liverpool de uma vez.
Recolhia algumas garrafas deixadas numa mesa próxima, facilitando o trabalho do garçom responsável por aquela área, quando viu os amigos entrando no bar. James e Kirstie estavam à frente do grupo, seguidos por Connor e a namorada, Lucy, Tristan e a garota da vez, e uma quarta garota que não conhecia. Suspirou, controlando os nervos e tratando de aliviar a tensão nas mãos quando notou que os nós dos dedos estavam brancos.
— E aí, ?
— Oi, James. Mesa para quantos? — Questionou. James sabia muito bem o que queria dizer.
— Estamos em oito, contando com você, meu amigo — Tristan respondeu, já puxando uma cadeira e acomodando a acompanhante. Os outros o imitaram, e uma cadeira ficou vazia ao lado da garota desconhecida.
— Obrigado, mas eu estou trabalhando.
, qual é? — Connor interveio, abrindo os braços para o amigo como se pedisse cooperação.
— O que vocês vão querer?
— Que você se sente com a gente, pelo menos um pouco — Tristan insistiu, mesmo sabendo que James e Kirstie estavam certos desde o início: aquela era uma péssima ideia.
— Não tem no menu, Tristan. Vão querer as batatas, como sempre?
— Sim, , por favor — James respondeu, colocando um fim na discussão infundada.
Enquanto se afastava, ouviu Kirstie pedir desculpas à garota — amiga da acompanhante de Tristan, aparentemente —, dizendo que o rapaz não estava em um dia bom. Comprovou o argumento de Kirstie quebrando o lápis que usava para anotar os pedidos, e mais uma vez os nós dos dedos estavam brancos em torno do pedaço partido de madeira.

—x—

— Eu não aguento mais, . Não aguento mais meus próprios amigos fazendo esse tipo de coisa, armando esse tipo de coisa para mim — desabafou ao telefone. — Que droga! Eu estou aqui há duas semanas e já é a terceira vez que eles tentam me empurrar alguma garota. Uma prima distante, uma colega da faculdade, e agora, uma amiga da caçada da noite do Tristan.
O rapaz analisava os livros na estante do quarto que lhe pertenceu durante a maior parte da vida. Já tinha reorganizado os títulos incontáveis vezes, cada uma seguindo uma lógica diferente. Depois de alguns dias insatisfeito com as soluções que arranjava, descobriu que, na verdade, gostava mesmo era da atividade de tirar todos os livros da estante, inventar uma nova regra e recolocá-los no lugar.
— Você se lembra como a gente se conheceu? — Sorriu, e tinha certeza de que saberia disso quando ouvisse a mensagem da secretária eletrônica. — Ainda não acredito que foi através do Tristan. E agora ele quer bancar o casamenteiro, como se fosse possível encontrar outra garota como você.
Ficou em silêncio. Ainda não sabia exatamente por que ligava para , ciente de que ela não atenderia, mas sabia que falar com ela, mesmo dessa forma, o ajudava a se acalmar. Ouviu o barulho das chaves na porta, e se apressou para encerrar a ligação.
— Está ficando mais difícil esconder dos meus pais o que aconteceu. Eles não vão aceitar muito bem, mas vou ter que contar em breve. Por enquanto, eles acham que você está numa viagem de trabalho e eu não quis ficar sozinho, o que não é totalmente mentira. Queria saber o que você disse aos seus pais... garanto que teve uma ideia melhor que a minha.

—x—

Um ano atrás

— Pegou os cabos da guitarra?
— Estão sempre comigo.
— Ótimo! — deu um beijo breve no namorado, se assegurando de que todos os detalhes estavam em ordem. faria, naquele dia, uma reunião importante com investidores da gravadora para tentar aumentar o orçamento para o marketing do seu álbum. — Vai dar tudo certo.
— Queria que você estivesse lá comigo.
— Você dá conta sozinho — deu uma piscadinha para o rapaz, que riu. — Ah, . Não esquece que eu preciso de você cedo em casa, hoje, viu?
— Vou estar em casa às 17h, aí nós podemos ir visitar nosso futuro ninho de amor.
— Continua falando desse jeito que você se muda sozinho! — riu.
Com um último beijo rápido, se despediram, cada um focado nos próprios planos para o dia.


— Grande dia, garoto! Aqueles caras não abrem a carteira tão facilmente, e você arrancou uma bolada deles.
— Acha que fomos bem, Ash?
— Se fomos bem? Não ouviu o que eu acabei de falar? — O agente sorriu, bastante contente com o resultado da reunião.
concordou com a cabeça, ainda sem muita noção do que tinha acontecido. Sendo um completo leigo no assunto, não podia imaginar se o novo contrato era realmente vantajoso assim, mas confiava em Ashton. Era para isso que ele estava ali, afinal.
— Isso merece uma comemoração! — Ashton saiu da sala de reuniões dando um tapinha amigável nas costas do rapaz.
terminou de guardar o equipamento no estojo e se preparou para ir para casa. Pegou o elevador animado, pensando em aproveitar o resto do dia, cumprimentou o recepcionista na entrada do prédio e finalmente começou a procurar um táxi. Tamborilava na caixa da guitarra quando sentiu a mão pesada de Ashton segurando seu ombro.
— Aonde você está indo, ? — Perguntou, energético, assustando o garoto.
— Ashton! Eu... Estou voltando para casa — respondeu, confuso.
— Garoto! Nós temos um lugar para ir, e você não vai querer perder.
— Eu sinto muito, Ash, mas já tenho um compromisso com a minha namor—
— Com a namorada, sei — Ashton cruzou os braços, analisando o rapaz por algum tempo. — É uma festa importante, , cheia de peixes grandes da música. O próprio Arthur Lahey será o anfitrião, entende? O dono da gravadora vai estar lá. É uma oportunidade única de fazer contatos, tenho certeza de que a sua namorada vai entender.
não podia negar que era tentador. Naquele ramo, talento era secundário, desde que você tivesse os contatos certos. Se tivesse os dois, melhor ainda. Pegou o celular para enviar uma mensagem a e viu que a reunião havia terminado cedo. Ainda eram 15h20. Teria tempo de circular um pouco pelo evento e voltar para casa a tempo de encontrar a namorada.


abriu a porta do apartamento com cuidado, tentando fazer silêncio. Precisava arrumar as dobradiças com urgência! Colocou as chaves e os sapatos no aparador da entrada, e apoiou a guitarra no cabideiro de casacos. Dirigiu-se devagar à cozinha, com fome e sede, quando ouviu o som baixo da TV da sala. Droga! Esperava que já estivesse dormindo. Com passos leves, foi atrás da namorada, que assistia a um filme de herói qualquer.
, eu sinto muito.
ajeitou-se no sofá, trocando a perna em que estava sentada e aumentando o volume da televisão.
, por favor.
— Meia noite e quarenta e cinco, .
— Eu sei, , eu...—
— Eu fiquei quase uma hora enrolando a corretora, esperando para ver se você ia aparecer, rezando para que nada tivesse acontecido porque você não atendia a droga do telefone!
— Corretora? Eu não sabia, eu pensei que nós íamos sozinh—
— Pensou? Jura que você pensou? — finalmente tirou os olhos da televisão e encarou o namorado.
— Eu sei que eu prometi, , mas surgiu um imprevisto na gravadora, e eu precisei ficar.
— Que imprevisto te impediu de pegar no celular das três horas da tarde até a meia noite e meia, ?
— Eu... — de repente, passou a achar os próprios pés interessantíssimos, e travou o olhar neles. — Era uma festa da gravadora, o dono estava lá, e eu precise—
— Uma festa, ? Uma droga de festa?
— Eu preciso fazer contatos, , você sabe.
— E precisa fazer isso às minhas custas?
— É a última vez que isso vai acontecer, eu prometo.
Sem dar uma resposta, desligou a televisão e foi para o quarto. achou melhor dormir na sala, naquela noite.

—x—

Presente

— Eu sei que eu prometi que era a última vez. Eu sei que eu estava errado, e eu sei que você teria entendido se eu tivesse te avisado. Mas aquela não foi a última vez, e eu continuei não avisando — apertou os olhos com força, remoendo cada palavra que dizia. — Eu tinha medo de te deixar incomodada ou parecer que eu não era sério a respeito da minha carreira, com tantas festas e coquetéis que o Ashton me arrastava para ir. Acho que, no fundo, eu mesmo pensava isso de mim, e não queria que você pensasse também.
colocou o telefone no viva-voz enquanto terminava de se vestir. Na gravação, o som dos cabides batendo uns nos outros e o rangido da porta do guarda-roupa velho faziam fundo aos desabafos do rapaz.
— Acho que você ia gostar de saber que eu rompi o contrato com a gravadora. Tentei mudar de agente, primeiro, mas Ashton era o único que tinha espaço na agenda para um iniciante, então eu rompi. Não queria continuar trabalhando com uma empresa que me fazia sacrificar tudo o que era importante para mim. Nenhuma carreira bem-sucedida vale a pena se eu precisar abrir mão das pessoas que eu amo.

—x—

estava sentada na ponta da cama, observando a tela do celular acesa entre as mãos. Enxugou o rosto às pressas quando ouviu a batida leve na porta, e pediu que a pessoa entrasse.
, está tudo bem, minha filha? — A mulher de quase sessenta anos perguntou, preocupada, notando que a filha havia chorado.
— Está sim, mãe. Está tudo bem.
A mulher se aproximou de , fazendo um carinho acolhedor nos cabelos da filha.
— É o de novo?
assentiu.
— Não fique assim, minha filha. Sei que a saudade dói, mas agora você namora um músico conhecido — sorriu, abraçando . — Vai ter de se acostumar com a distância sempre que ele sair em turnê.
— Eu sei, mãe. Eu só sinto falta dele.
— É assim que o amor funciona, meu bem. Veja eu e seu pai, por exemplo. Aturo aquele marrento teimoso de uma figa há mais de quarenta anos, e até hoje sinto saudade dele do momento em que ele sai por aquela porta até o momento em que ele pisa dentro dessa casa.
— O casamento de vocês é lindo, mãe — respondeu, brincando com o telefone, inquieta. — Espero que o meu seja assim também, algum dia.
A mais velha sorriu.
— E vai ser, meu bem. Vai ser. Agora venha jantar, a comida está pronta.
— Já estou indo. Vou só me trocar primeiro.
A mãe lançou um último sorriso para a filha, e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. ligou o celular mais uma vez, e apertou alguns botões.

— Você tem uma nova mensagem.
—x—

Essa é a última, eu prometo riu sem humor. — Depois de quase uma semana te ligando, eu percebi que posso passar o resto da vida te deixando mensagens, que não vai ser igual a falar com você! Eu estou falando com a droga de um robôsuspirou alto, as botas pesadas ecoando no piso de madeira do bar a cada passo inquieto do rapaz.Minha vida se resumiu a isso, agora: conversar com um robô para tentar consertar as merdas que eu fiz ao longo de meses. Mas eu também não sei mais o que fazer. Não é como se a gente viesse com um manual de instruções, não é? Não existe um protocolo para reparar as partes quebradas, como em um hospital de brinquedos.
parou de andar, conferindo o horário no grande relógio de ponteiros pendurado no meio do salão. Apertou alguns botões e puxou algumas alavancas, ligando as máquinas do balcão e preparando a cerveja para receber os clientes da noite.
Eu sinto muito, . Tem um milhão de coisas que eu queria ter dito antes de estragar tudo, mas eu espero que você encontre alguém que as diga. Eu amo você, . Essa eu precisei dizer, mesmo sendo tarde demais.

—x—

Você ouviu todas as suas mensagens.


ouviu o "bip" do celular anunciar a secretária eletrônica, agora, vazia. Sentiu as pálpebras pesarem três vezes, e na terceira manteve os olhos fechados. O rosto molhado era reflexo do coração apertado no peito, e os braços enrolados com força em torno do próprio corpo eram resultado da tentativa frustrada de não desmoronar.
Respirou fundo.
Não tinha tempo para sentimentalismos.
Amarrou os cabelos de qualquer jeito e jogou um sobretudo nos ombros, antes de lavar o rosto às pressas. Gritou aos pais que jantassem sem ela, já pegando a chave do carro e conferindo o relógio dourado no pulso. Precisava chegar ao 's Gin Bar antes dos primeiros clientes.



Fim



Nota da autora: Olá, tudo bem?

Protocol é uma das minhas músicas favoritas dessa banda absolutamente perfeita, e admito que foi um desafio escrever essa história. Espero do fundo do coração que você tenha gostado ?

Se quiser me acompanhar e ler outras histórias, as minhas redes sociais e página de autora estão logo aqui embaixo.




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