Finalizada em: 30/04/2021

Capítulo único

O despertador soava alto na mesa de cabeceira no segundo andar da casa de paredes verdes claras com estampa florida em Green Lane, ao sul da cidade de Coventry. Cada tik seguido de um tok mais estridente ecoava no fundo da mente da jovem que começava a tomar consciência do som irritante. Depois de quase dez minutos, o relógio se cansou e fez uma pausa de antes de iniciar uma nova tentativa de acordar a moça. finalmente levantou-se, num pulo, quinze minutos atrasada.
— Droga, ! Droga!
Depois de trocar de roupa, apressada, passou direto pela cozinha, ignorando o estômago vazio que reclamava, e correu em direção ao carro. Olhou no relógio e respirou fundo repetidas vezes, tentando recuperar o fôlego e se acalmar antes de dirigir. As mãos tremiam no volante e a sensação de pânico acompanhou a moça até a porta da universidade.

, finalmente! — foi saudada por Rosie assim que entrou na sala de aula, ofegante. — Você está bem? Aconteceu alguma coisa?
— Estou, sim. Só dormi demais, eu acho — respondeu com um sorriso protocolar curto e rápido.
Rosie vincou a testa e inclinou a cabeça levemente para o lado. Encostou as costas da mão direita na cabeça da colega, fingindo aferir a temperatura da mulher.
— Tem certeza de que você está bem?
— Claro, Rosie — afastou o rosto, empurrando a mão de Rosie e se arrependendo imediatamente por ter soado irritada. Não que ela não estivesse irritada, mas a amiga só estava se certificando de que ela estivesse bem. Era injusto e cruel se estressar por conta disso, e estava sendo muito injusta e cruel com as pessoas nos últimos meses. Amansou a voz e buscou uma justificativa para amenizar as coisas. — Eu fui dormir tarde ontem, só isso.
A surpresa no rosto da colega deixou claro que havia piorado tudo.
— Você foi dormir tarde antes de uma prova? Justo você?
— Que prova, Rosie? Nossa próxima prova é só daqui duas semanas, antes da entrega do seminário.
— Não, , a entrega do seminário é amanhã. Hoje nós temos prova.
sentiu o sangue sumir do corpo.
Pegou o celular e a agenda na bolsa, procurando pelas anotações certas. Não era possível que ela tivesse perdido a noção de tempo a ponto de ignorar que duas semanas haviam se passado, mas vendo que a data marcada no caderno batia com a data exibida na tela do celular, sentiu as pernas fraquejarem e a respiração começou a falhar. Tentou inspirar contando até cinco, mas os pulmões pareciam não querer obedecer. Abriu um botão da camisa que usava, começando a se sentir sufocada.
— Rosie, por tudo que há de sagrado, me deixa revisar as suas anotações, por favor! As minhas estão bagunçadas, eu não organizei o material para estudar.
, respira — Rosie segurou as mãos da amiga, preocupada. — Eu posso te emprestar, mas você não vai conseguir revisar toda a matéria sobre o sistema neurológico em quatro minutos, é a matéria do semestre inteiro.
Sentindo as mãos de perderem temperatura e os olhos se encherem de lágrimas, Rosie puxou a moça para cima, fazendo-a se levantar e envolvendo-a num abraço.
— Vai para casa, . Você não vai conseguir fazer a prova nesse estado. O Professor O’Connell ama você e sabe que você não perderia uma prova à toa. Tenho certeza de que ele vai te deixar fazer outro dia.
, roboticamente, mexeu a cabeça de cima para baixo e depois de baixo para cima por algumas vezes. O olhar estava fixo em algum canto da parede imaculadamente branca da sala de aula do curso de medicina da Universidade de Warwick.
— Viu? Não é tão ruim assim. Você pode aproveitar para revisar o seminário, sei que isso vai te acalmar.
A moça preferiu não responder, mas pensar no seminário não era nem um pouco tranquilizante. Pegou a bolsa e a chave do carro, e saiu da sala depois de uma despedida breve, pensando em como faria, de um dia para o outro, um trabalho que se programou para fazer em duas semanas.

A viagem da faculdade até a casa, que durava cerca de dez minutos, pareceu ter durado quarenta. estava tensa, com os ombros doloridos e calafrios pelo corpo, apesar do clima ameno que fazia na cidade. Sentia o pescoço enrijecido enquanto o coração batia nos ouvidos, e o estômago embrulhado já começava amargar a garganta. Firmou os pés o máximo que pode e atravessou o jardim bem cuidado na entrada da casa.
O ruído da porta era suficiente para que não precisasse se anunciar. Sabia que a mãe a ouviria entrando em qualquer lugar da casa e viria com passos curtos e ligeiros, braços cruzados com rigidez na frente do corpo, usando um avental ou lenço no cabelo — possivelmente os dois —, e o olhar duro e inquisidor que jurava que jamais sairia de sua memória, tantas as vezes que viu aquela expressão no rosto da mãe.
Tinha o discurso ensaiado para justificar sua presença inesperada, mas todo o trabalho minucioso que empregou no texto foi jogado fora quando ela viu o pai sentado na poltrona da sala, de roupão, pantufas e charuto, lendo um jornal, e a surpresa a fez se esquecer de tudo.
O homem de cabelos ralos espiou por cima do jornal, confuso. Não sorriu quando viu a filha parada feito estátua à porta do cômodo, nem manteve a atenção nela tempo suficiente para notar que seus movimentos eram lentos e engasgados.
— Resolveu não ir à aula hoje? — a voz do pai saiu abafada pelo charuto preso entre os lábios.
— Pai? Eu... A minha turma foi dispensada, na verdade. Nos deram o período livre para pesquisas, e eu prefiro estudar em casa — articulou com esforço, sentindo dificuldade para falar por conta da dor no maxilar, trincado desde que saiu da sala de aula.
Alfred resmungou, soltando uma baforada de fumaça e derrubando um pouco das cinzas que se acumulavam na ponta do cigarro. Olhou a bagunça que havia feito e resmungou mais uma vez, irritado.
— Se é para você estudar em casa, para quê eu estou investindo dinheiro em uma das melhores faculdades de medicina do país?
não respondeu. Sabia que a pergunta do pai era retórica, ainda mais se tratando de dinheiro (nesse caso, a pergunta era, na verdade, uma indireta). Antes que precisasse explicar mais uma vez que a faculdade de medicina não permitia um emprego em meio período, achou melhor mudar de assunto.
— Está tudo bem com o senhor, pai? Imaginei que estivesse no escritório.
— Essa é a vantagem de estudar e trabalhar duro a vida toda para ter seu próprio negócio, — Alfred voltou a atenção para o jornal, com o charuto pendurado entre os lábios e a voz abafada. — Posso me dar o luxo de tirar um dia de folga durante a semana.
A mulher apertou os olhos e inspirou lenta e profundamente, quase apreciando a sensação dos pulmões queimando com o oxigênio. Desejou ter inventado que estava doente.
— Vou para o meu quarto imediatamente, então. Tenho muita coisa para estudar.
Esboçou um sorriso sem graça que passou completamente despercebido pelo pai e subiu as escadas com pressa, tomando cuidado redobrado para não cair. Naquele dia, todo cuidado era pouco.
A porta branca do quarto no segundo andar escondia o cômodo desorganizado, com roupas espalhadas e a cama revirada da manhã corrida. observou o lugar, calculando mentalmente quanto tempo levaria para colocar tudo em ordem. Notou três camisetas em cima da poltrona que precisavam ser colocadas para lavar e uma manchinha no lençol de elástico, de quando , descumprindo a regra prioritária da mãe de não comer na cama, derrubou molho de tomate. Um par de meias que ela havia esquecido fora da gaveta tinha de ser costurado e a mesa de estudos gritava por uma arrumação.
Pegando a lixeira e colocando do lado da escrivaninha, começou a separar alguns papéis espalhados sobre a mesa, anotações antigas e rascunhos de trabalhos dos semestres anteriores. Jogou metade das folhas no lixo e colocou um novo post-it no mural de recados para não se esquecer de esvaziar a lixeira depois. Com a área de trabalho organizada, partiu para as camisetas e colocou-as na lavanderia; voltou para o quarto, separou um lençol limpo e colocou o usado em cima da poltrona, vestindo a cama em seguida. Sentiu-se bem e resolveu trocar de roupa, também, deixando as roupas que usava junto com o lençol sujo, e entrando num pijama quentinho e confortável.
Sentando-se na cama, precisou de muito autocontrole para não se deitar e voltar a dormir. Pegou a mochila, pescando um caderno dentro dela e procurando novamente as anotações sobre o trabalho cujo tema nem se lembrava qual era. Gastou alguns minutos relendo os recados que os amigos deixaram na contracapa do caderno, como se fossem colegiais. Era grata a cada um deles. Não sabia quanto tempo teria aguentado, não fosse a vontade de vê-los todos os dias.
Quando finalmente descobriu do que o seminário se tratava, voltou para a mesa de estudos e apertou alguns botões para ligar o computador.
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Contou quantos segundos a tela levou para ligar completamente, então passou a observar os pixels acendendo e apagando, formando as primeiras imagens durante a inicialização. Uma barrinha de progresso mostrava quanto faltava para a máquina estar pronta para o uso, e as ventoinhas da torre de controle já não faziam tanto barulho. Quase inconsciente do que estava fazendo, vários minutos depois, levou a mão ao mouse e, como se tivesse ligado um piloto automático, começou a abrir os programas e arquivos de que precisaria. O olhar estava perdido em algum lugar desde que se sentara ali.
despertou do transe quando o celular apitou, uma mensagem de Rosie perguntando se ela estava bem flutuava na tela. Deixou para responder depois, dando um longo bocejo. Retorceu o rosto, com dor no maxilar mais uma vez, e concluiu que não conseguiria se concentrar no trabalho daquele jeito. Desceu as escadas mais uma vez, seguindo em direção à cozinha, ansiosa por uma xícara quente de chá e alguns biscoitos amanteigados.
What would you think if I sang out of tune? Would you stand up and walk out on me?
Cantarolando, a moça colocou água na chaleira e separou o leite e as ervas para a infusão. Conforme o cheiro da camomila preenchia o ar da cozinha, sentia os ombros voltando à posição normal; os músculos, antes parecendo ossos fora do lugar, agora estavam relaxados. A chaleira apitou e a moça ajeitou a bebida, abrindo mão do mel, mas adicionando uma folha de hortelã ao chá com o leite. Colocou a xícara em uma bandeja pequena de madeira, entalhada especialmente para ela, como presente de aniversário de dez anos feito pelo avô, e pegou os biscoitos e uma barrinha de chocolate que encontrou no armário. Agora, sim, estava pronta para estudar.
saiu da cozinha equilibrando a bandeja nas mãos. Atravessou o corredor e quase derrubou tudo quando deu de frente com a mãe, que descia as escadas. Genevieve parou de súbito, analisando o lanche da filha. Estalou a língua e franziu o canto dos lábios, as sobrancelhas levemente arqueadas enquanto as pálpebras ainda cobriam a maior parte dos olhos.
— Com o tanto que você anda comendo nesses últimos tempos, nós poderíamos alimentar uma família inteira. Não quero ouvir reclamações depois, quando suas calças não estiverem servindo mais.
Engolindo em seco, a jovem abaixou a cabeça, encarando o primeiro degrau da escada.
— Não vou, mãe. Não comi nada antes de sair, estou com fome.
— Seu pai me contou que a sua turma foi dispensada. Espero que isso não se reflita nas suas notas.
— Não vai. Prometo.
Genevieve ergueu a cabeça e terminou de descer a escada, passando pela filha e seguindo em direção a sala sem mais nenhum comentário.

Quase duas horas mais tarde, ainda brigava com a introdução do trabalho. Como se o sistema nervoso não fosse intrincado o suficiente, as conexões nervosas e anestesias eram um tema que não entrava na cabeça da moça. As inúmeras possibilidades de erro durante um procedimento eram assustadoramente perigosas e cada etapa do processo precisava ser muito bem controlada. Depois de quase metade do curso concluída, ainda se desesperava ao pensar em como seria fazer todas aquelas coisas, e questionava se teria capacidade de fazê-las.
Por mais que estudasse o funcionamento do cérebro, não conseguia entender o que acontecia no seu próprio quando encerravam uma disciplina. Precisava fazer um esforço redobrado para não esquecer tudo o que havia estudado, mas era inevitável: se olhasse para trás agora e pensasse em tudo que devia ter aprendido, podia contar nos dedos de uma mão os conteúdos que ainda tinha na memória.
Seguramente, era uma das alunas mais aplicadas do seu ano. Tinha resultados excelentes, era comprometida e tinha comportamento exemplar. Um desempenho menos que impecável não era uma opção para ela. Não concluir o curso de medicina na Universidade de Warwick com honras era inaceitável. Ela precisava se formar e se tornar uma grande médica, porque... Ela tinha que ser médica, porque... Honestamente, não fazia ideia do motivo de cursar medicina, além de que esse era o curso que Alfred e Genevieve sempre disseram que ela cursaria.
“Minha filha vai ser médica”, ou ainda “ela sempre disse que quer ser médica quando crescer” eram frases que ela se lembrava de ter escutado os pais dizendo com frequência quando era mais nova. O que ela não lembrava era de quando havia dito aquilo — e, claro, a porcaria da matéria. Também não se lembrava de ter cogitado outras opções, mas acreditava que isso era porque nunca teve outras opções; sua vida inteira foi dedicada à medicina.
sabia, por exemplo, que gostava de assistir filmes e ouvir música, mas não achava que essas atividades podiam ser consideradas como hobbies. Não era cinéfila e nem musicófila. Achava que cozinhar era terapêutico, mas nunca teve muito tempo para passar na cozinha. Esportes? Tirando o ballet clássico durante a infância e a natação na época da escola, não tinha experiência com mais nenhum, e o piano onde tinha aulas quando era mais jovem estava juntando poeira na sala.
não sabia quase nada sobre si mesma, mas uma das coisas que sabia era que, no fundo, não queria ser médica.
Com a cabeça apoiada nas mãos, ouviu a porta do quarto se abrir e virou-se para encarar a mãe. Genevieve estava parada à porta, raramente entrava no quarto da filha, e , apesar de não dizer nada, gostava das coisas assim. Apenas alguns meses antes foi que a jovem percebeu que tinha a tendência a dar um passo para trás sempre que a mãe dava um para frente em sua direção, e com o pai não era muito diferente.
— Quando você começou a fazer compras para a casa, para jogar comida fora desse jeito? — Genevieve apontou para a xícara de chá frio e os biscoitos intocados, quebrando o silêncio.
— Eu — encarou a bandeja, ainda no mesmo lugar onde ela a havia deixado quando entrou no quarto — me distraí com o trabalho e esqueci de comer.
— Você só não esquece de respirar porque é involuntário — “não é”, pensou, se surpreendendo por ter lembrado daquilo, mas preferiu não responder a mãe, que deu de ombros. — Já que você está em casa, arrume seu guarda-roupa. Parece o armário de uma delinquente, todo bagunçado.
— Agora? Mas, mãe, eu preciso terminar esse trabalho. A entrega é amanhã.
Genevieve ficou estática, sinal claro de que estava se controlando para não perder a compostura.
— O trabalho é para amanhã e ainda não está pronto? A casa não tem culpa da sua desorganização, . Quando eu voltar, quero esse quarto arrumado — e saiu, batendo a porta.
A moça observou a poltrona ocupada pelo lençol e as roupas que usara de manhã, além de um par de sapatos fora do lugar e o lixo que precisava ser esvaziado, então pensou nas roupas que estavam fora do lugar dentro do guarda-roupa, e sentiu a garganta dar um nó quando viu que ainda estava longe de terminar o seminário.
— O quarto todo?

A semana passou mais rápido do que conseguiu assimilar. Depois da entrega de um seminário pela metade e a maior sensação de constrangimento que já sentiu na vida, em pé na frente da turma inteira, apresentando um assunto que ela não havia compreendido, os dias não foram registrados como mais que um borrão na mente da mulher.
levantou-se da cama, as pernas e braços pesados e as costas encurvadas. Procurou o relógio na mesa de cabeceira e esfregou o rosto com as mãos repetidas vezes quando viu que já passava das três horas da tarde.
— Nem acordar na hora certa você consegue, , que droga.
Inspirou, contando de zero a cinco, e depois soltou o ar, contando de cinco a zero. Engoliu o nó que se formou na garganta e percebeu os dedos das mãos se fechando, com força, as unhas contra a palma, conforme a onda de raiva tomava conta do corpo dela. Onde estava com a cabeça para se lamentar?
Fraca.”
Arrumou a cama.
Incompetente.”
Abriu o guarda-roupa, buscando roupas limpas para se trocar, e viu que Genevieve tinha rearrumado as peças depois de organizar todo o armário no começo da semana. Pegou, por fim, uma calça jeans simples, um cinto que precisava de mais um furo, e uma camiseta branca que costumava ser mais justa. Prendeu um alfinete na barra da peça para lembra-se de levá-la à costureira, durante a semana.
Inútil.
Vestida, tirou o saco de lixo da lixeira da escrivaninha, com cinco dias de anotações e rascunhos acumulados ali.
Mimada.
Abriu a janela do quarto, deixando a luz do sol iluminar o cômodo e apagou a luz que estava acesa. Aproveitou e tirou todos os aparelhos das tomadas.
Com o quarto em ordem, desceu para o térreo repetindo o mantra reverso, curiosamente ouvindo a voz da mãe ecoando em algumas das palavras. Foi direto até a cozinha e não encontrou nada além das louças na secadora. Abrindo a geladeira, pegou duas batatas e, colocando uma panela com água no fogo, começou a descascá-las, ouvindo o estômago reclamar.
Genevieve entrou na cozinha, carregando uma cesta de roupas e atravessando o cômodo em direção à lavanderia.
— O almoço é servido ao meio-dia nessa casa, . Devia ter acordado mais cedo.
Ainda concentrada nas batatas, enxugou o rosto com as costas da mão e respirou fundo, mantendo a calma. Acertou a temperatura do fogão, separou alguns temperos e começou a cortar os legumes. Fingiu que não notou quando Genevieve entrou novamente na cozinha, abriu a geladeira e revirou o congelador. Sacou de lá um prato envolto em papel alumínio, que colocou sobre a mesa, e apertou de leve o ombro da filha.
— Você teria gostado mais de comê-la fresca, mas tenho certeza de que ainda está saborosa.
esperou Genevieve sair da cozinha e abriu o embrulho, revelando um grande e apetitoso pedaço de lasanha à bolonhesa, o prato favorito da jovem. Controlando o tremor dos lábios, colocou a lasanha no forno para esquentar e terminou de cozinhar as batatas, e quanto tudo estava pronto, serviu-se de um copo de suco, colocou tudo na bandeja de madeira do avô e saiu à procura da mãe. Queria agradecê-la.
Não seja tão ranzinza, Alfred. Queria que eu a deixasse sem comida?
Parou na porta da sala, onde Genevieve tricotava um suéter no sofá enquanto conversava com Alfred, sentado na poltrona do canto, com jornal e charuto a postos.
Se ela tivesse acordado em um horário menos vulgar, teria almoçado conosco, à mesa, como uma família decente. Deve ser maravilhoso não ter nenhuma responsabilidade na vida e poder dormir pela maior parte do dia. Com tantas contas para pagar, eu jamais poderia fazer isso.
Decidindo agradecer à mãe em outro momento, subiu as escadas apressada e fechou a porta do quarto. Colocou a bandeja mais uma vez sobre a escrivaninha, e mastigou duas porções da massa recheada antes de entender que havia perdido a fome. A única coisa que conseguia fazer naquele momento era enrolar-se nas cobertas e deixar que toda a raiva, a frustração, o cansaço e o medo transbordassem de dentro do peito, enxarcando o travesseiro que abafava os soluços.

abriu os olhos e piscou algumas vezes para ajustar-se ao cenário. O quarto estava escuro, mas quente. A janela estava fechada, o aquecedor havia sido ligado e a bandeja com a comida não se encontrava mais sobre a mesa de estudos. Por um momento, achou que Genevieve tinha resolvido ser carinhosa naquele dia, mas aos poucos as lembranças de ter se levantado com frio, mesmo que ainda sonolenta, voltaram à mente da moça.
Sentindo o coração pesado com ingratidão e culpa, imaginou a reação da mãe ao entrar no quarto e encontrar a lasanha mordiscada largada no prato. Era a primeira demonstração de afeto da mulher em dias, e fez a desfeita de rejeitá-la. Antes que a cabeça voltasse a dor, vasculhou a caixinha onde guardava as coisas mais importantes que possuía, procurando a carta que recebeu da tia no último aniversário. Precisava de colo, e as cartas eram a coisa mais próxima disso que ela tinha.
Tia Gwen era irmã mais nova de Genevieve, e foi carinhosamente convidada por ela e Alfred a se afastar da filha por ser uma “terrível influência”. Era também uma das pessoas que mais amava no mundo inteiro. A maior parte das coisas que guardava naquela caixinha tinha sido dada a ela por Gwen, e devido à coleção de preciosidades que mantinha, recebeu da tia, também, o apelido de Ariel.

Minha pequena sereia,

Sinto muito por não poder estar presente no seu aniversário — mais uma vez. Até as flores da loja ficaram menos alegres essa semana. Elas podem sentir quando estamos tristes, você sabe. Já te contei sobre as flores inúmeras vezes.
Quando completei vinte e quatro anos, ganhei do meu pai um álbum que mudou a minha vida. Cada letra e cada melodia ajudaram a formar a mulher que eu sou hoje, e apesar do que sua mãe diz, tenho muito orgulho de ser eu. Esperei vinte a quatro anos para dá-lo a você, e espero, com todo meu coração, que goste (mas se você esperava um álbum antigo e com marcas de uso e história — ou, como vocês dizem hoje em dia,
vintage —, lamento. Esse é novo. O meu está muito bem guardado na estante ao lado da vitrola na sala de leitura do hotel).
Torço para que ele te ajude a enxergar a mulher forte e corajosa que você é. Sei que você ouviu palavras duras durante toda a sua vida, mas lembre-se de que sua mãe tem a profundidade emocional de uma folha de papel em branco, e se casou, para a surpresa de ninguém, com um homem menos sensível que um computador. Não escute os conselhos de vida de uma máquina, Ariel.
Sei que eu não posso te visitar, mas sua reserva é vitalícia no meu coração.

Com carinho,
Tia Gwen.

Sem fazer a menor questão de conter as lágrimas e o enorme sorriso, buscou na caixa o disco de vinil com capa colorida onde se lia Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Não tinha um toca-discos, mas se contentava em ouvir as músicas em algum serviço de streaming. Correu os olhos pelos títulos das músicas listados no verso da capa e, num momento de inspiração, soube o que tinha que fazer.

Alfred acordou com o canto dos pássaros no domingo de manhã, assim como fazia todos os dias. Espreguiçou-se e calçou os chinelos felpudos, como fazia todos os dias, e levantou-se em silêncio, como fazia todos os dias. Saiu em direção ao banheiro e fez sua higiene matinal, como fazia todos os dias, até voltar ao quarto. Em sua rotina quase cronometricamente calculada, Alfred deveria, agora, pegar o copo de água que Genevieve deixava na mesa de cabeceira para levá-lo de volta à cozinha, mas o copo não estava lá. Nem Genevieve!
Desconcertado, foi atrás da esposa no andar de baixo. Encontrou-a parada de frente para a porta de entrada, encarando a rua. De costas para o marido, a mulher segurava algo nas mãos e seu corpo inteiro tremia.
— Genevieve, o que aconteceu?
Em resposta, a mulher entregou ao marido um bilhete, escrito e assinado com a caligrafia de , e soltou um soluço pesado.
— Ela foi embora. Por que ela fez isso comigo?


tirou os fones quando um sino alto soou na estação. Ouviu uma voz no alto-falante da Avanti West Coast anunciar o embarque dos passageiros com destino a Euston, então pegou a mala pequena e ajeitou a mochila nos ombros, entrando, finalmente, no trem. Respirou fundo, apertando a mochila contra o peito, agora acomodada na poltrona macia do trem, e notou que as mãos tremiam.
Era óbvio que estava à flor da pele. Havia acabado de tomar a maior decisão da sua vida, e ainda não sabia bem de onde tinha tirado coragem para isso. Sair de casa assim, de repente, deixando os pais e a faculdade para trás, sem ter um plano certo para o futuro era o extremo oposto de tudo que já tinha feito na vida, com passos sempre calculados de acordo com "o grande plano".
Por outro lado, nunca havia se sentido tão bem, e finalmente parecia que as coisas estavam se encaixando. Escolheu tomar as rédeas da própria vida nas mãos ao invés de deixar que fosse uma marionete infeliz para sempre, e sentia a excitação pelo que estava à frente palpitando no peito. Teve vontade de gargalhar, de dançar e de gritar. Queria gritar aos quatro ventos que estava viva!
Essa era a característica que mais admirava na tia, e imaginava que fosse por esse mesmo motivo que a mãe tinha proibido o contato entre as duas, ainda antes da tia se mudar para a acolhedora cidadezinha ao sul de Londres. colocou os fones de volta e deu play na música, deixando que John, Paul, George e Ringo cantassem a trilha sonora do momento mais decisivo da sua vida, enquanto assistia pela janela ao trem deixando a plataforma rumo a Rye.

She's leaving home
Bye bye.



Fim



Nota da autora:Oi, tudo bem?
Que responsabilidade que foi escrever essa fic!
McFly é, disparado, a minha banda favorita desde que eu me entendo por gente, e Sink or Sing tocou em pontos bastante delicados aqui dentro.
No plot inicial, Dougie era o personagem principal, par da , mas tem tanta coisa importante e delicada para ser dita nessa trama, que eu preferi escrever esse ficstape como uma introdução para a história, apresentando um pouco da vida da . E falando nela, eita personagem difícil de trabalhar! Falar sobre questões psicológicas e emocionais é sempre um desafio, mas imaginava que seria mais simples falar sobre transtornos de ansiedade uma vez que eu vivencio muitas dessas coisas na pele, mas no fim, acho que isso só tornou o processo mais trabalhoso, embora terapêutico.
Espero do fundo do coração que você tenha gostado e esteja curiosa para acompanhar a nossa protagonista e o baixista mais querido da Inglaterra nessa aventura de autodescobrimento e superação.

Se quiser conhecer outras histórias minhas e me acompanhar, minhas redes e página de autora estão aqui embaixo.
Um beijo, e até a próxima ♥


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