Finalizada: 06/03/2024

Realidade

Em um amanhecer chuvoso de uma sexta-feira de outono, iniciava o terceiro dia consecutivo que permanecia com seus olhos presos na folha branca do sketchbook em sua frente. Inicialmente a sugestão de Anne, sua agente havia sido muito convidativa, alugar um chalé nas montanhas, aproveitar o clima das folhas caindo das árvores para se inspirar a escrever a continuação de seu romance de fantasia. Na teoria, tudo se resolveria com um pouco de ar puro e sons estimulantes da natureza. Na prática, a autora estreante se deparou com a persistência do bloqueio criativo que não a deixava em paz.

— O que estou fazendo aqui mesmo? — indagou para si, soltando um suspiro chateado, por não conseguir nem mesmo escrever uma vírgula.

tinha suas próprias manias de escrita, primeiro os rascunhos em manuscritos, que a estimulavam a embarcar em sua imaginação a cada linha que escrevia, depois a digitação no documento do word, que lhe possibilita voltar às cenas para acrescentar detalhes ou retirá-los. No final, o resultado era sempre o esperado, uma boa história que a fazia sonhar acordada.

— Preciso pensar em algo o mais rápido possível… — disse ela, elevando um pouco mais sua voz, ao se levantar do chão onde estava sentada e se afastar da mesa de centro em frente ao sofá — Só tenho três meses para entregar a continuação do livro.

Caminhando até a área da cozinha, ela abriu um dos armários e vasculhou com os olhos todos os produtos dentro. Anne tinha caprichado no abastecimento, com diversos pacotes e latas dentro, uma enorme compra que daria para lhe servir por semanas caso fosse preciso. Logo, um barulho surgiu em sua barriga, juntamente com a vaga lembrança de quando havia sido sua última refeição. De forma lenta e desanimada, pegou um pacote de macarrão e uma panela, faria seu habitual espaguete. Não que ela fosse uma master chefe, entretanto, conseguia se virar na cozinha sem passar fome ou colocar fogo na casa.

— Huhuhuhuhuu… — ela começou a cantarolar algumas canções do One Direction, ao se lembrar da última vez que tinha feito o prato para uma amiga que estava chateada pelo término do grupo.

Após finalizar, ela fechou os olhos sentindo o suave aroma da comida, e agradecendo pelo alimento, devorou a moderada porção que cozinhou, não sobrando nem um único vestígio no prato e na panela. Um suspiro de quem estava satisfeita e em segundos uma careta ao voltar seu olhar para o sketchbook.

— Mal comecei minha carreira de autora e já estou considerando me aposentar. — resmungou ela, ao se levantar da cadeira e depositar o prato e o talher no bojo da pia — Por que fui inventar de escrever uma saga de cinco livros, quase morri para escrever os dois primeiros, agora a corda está em meu pescoço…

Ela bufou de leve e se locomoveu novamente para sala, ao pegar seu xale próximo as almofadas no sofá, sentou em seguida e se cobrindo de leve, deitou entre as almofadas para tirar um cochilo. Se não conseguia se concentrar na escrita e desenvolver a história, tentaria em seus sonhos provocar um estímulo para a situação.

sempre gostou muito de livros de fantasia, os contos dos irmãos Grimm eram seus favoritos na infância, algo que lhe despertou o desejo de criar suas próprias histórias com personagens originais. E sua saga contava com um universo mágico em que os seres humanos tinham poderes segundo o animal que os representava, com o enredo complexo, cheio de plots twitters, easter eggs e referências que lhe tomavam muito tempo de pesquisa e atenção na construção da narrativa. O que se iniciou como uma diversão, se tornou sua profissão e agora lhe exigia prazos de entrega e nenhuma ponta solta na história.

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Algumas horas depois, ela despertou de seu sono profundo, ao ouvir um barulho na janela, e voltando seu olhar para a mesma, notou que já era noite e tudo parecia muito escuro do lado de fora. não era uma pessoa muito curiosa, em sua concepção jamais sairia do chalé naquela hora da noite para saber o que era, porém, internamente ela se sentia inquieta demais para ignorar o barulho. Então, levantando-se do sofá, ajeitou o xale em seus ombros e caminhou até a porta.

— É apenas o vento… — sussurrou para si, ao tocar na maçaneta, tentando forçar uma relutância em sair.

Ao passar pela porta, se deparou com o nada, apenas a brisa refrescante da noite, embalada pela dança das árvores no outono, e o claro da lua cheia deixando todo o lugar iluminado como o dia. Ela desceu os degraus da varanda frontal e deu alguns passos cautelosos pelas folhas secas que estavam no solo, não queria fazer barulho.

— É apenas o vento. — afirmou novamente, ao fechar seus olhos e sentir a leve brisa tocar sua pele.

Com a respiração suave e baixa, ela se permitiu conectar a natureza, retirando o chinelo e pisando na terra. O solo frio a fez arrepiar de leve, seguindo uma sensação boa de liberdade e leveza. Em instantes, ainda de olhos fechados, seus pensamentos se transportaram para as páginas finais do seu segundo livro, a forma em que seu personagem principal declarou seu amor a vilã da história, mudando totalmente o rumo das coisas.

era uma autora que odiava clichês. E por isso, havia criado a vilã em total inspiração nela.

— É uma bela noite para se viver uma aventura. — uma voz grossa e rouca a despertou de seus pensamentos.

A mesma voz que em sua mente, ela imaginava de seu personagem principal.

— Hum?! — assim que abriu os olhos no susto, se viu estática, ao se deparar com um homem em sua frente.

Era a própria personificação de seu personagem, exatamente da forma que ela imaginou em sua cabeça e reportou ao ilustrador das capas e moodboards de seus livros. Seu coração pareceu nem mesmo estar batendo naquele momento, de tamanho espanto de sua parte, afinal, o homem que até ali só existia em sua mente e nas páginas que escrevia, agora estava diante dela.

— Quem é você?! — perguntou , demonstrando para ele, inutilidade o questionamento.
— Está mesmo me perguntando isso? — o homem soltou uma risada rápida, mantendo o olhar presunçoso — Você sabe quem eu sou.
— Isso não é real… — sussurrou ela, para sim, respirando fundo e fechando os olhos — Eu estou dormindo e vou acordar…

Outra risada soou vindo dele, com ela repetindo aquelas palavras mais vezes em sua mente.

— Posso lhe mostrar o quão real eu sou… — sugeriu ele, deixando sua voz com mais entonação, fazendo-a abrir os olhos e encará-lo com encantamento.

Aquele homem em sua frente era exatamente como o seu personagem, e exalava a mesma intensidade e confiança descrita por ela em diversas páginas. O olhar de abaixou para mão dele, que se mantinha estendida, e por mais que racionalmente ela não aceitasse, seu corpo de forma involuntária fez suas mãos tocarem a dele…

Se permitindo viver a aventura oferecida pelo seu personagem de contos de fadas fabricado.

Contos de fadas fabricados
Dão vida a um novo mundo.
- She Is Beauty We Are World Class / Louis Tomlinson

Realidade: Quando o mundo desperto deixa vocês exaustos e insatisfeitos, o sono os traz aqui, para encontrar liberdade e aventura. Para encarar seus medos e fantasias nos sonhos que eu crio." | Sandman, 1x01”



FIM.




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