Finalizada em ou Última atualização: 15/01/2023

Legado

Ter uma filha oficial médica não era o sonho dos meus pais, menos ainda em tempos de guerra. E ser Miller, a filha única de um importante advogado de Manhattan e uma colunista de revista de moda, era a última coisa que esperavam descobrir quando me conheciam em minhas missões. Para ser honesta, não imaginava que seria designada para servir na Ucrânia, o conflito não era do meu país, porém suas consequências já estava repercutindo por todo o mundo. E servir ao exército americano deixava tudo ainda mais pesado, elevando nossas responsabilidades. 

Minha missão era dar suporte e apoio aos oficiais médicos do país, no tratamento dos feridos de guerra. Próximo às linhas inimigas, em um resgate aos feridos de um bombardeio ao vilarejo de Demydiv, ao norte de Kiev, conheci o respeitado e admirado capitão Kozel. Com o olhar cansado e sussurros perguntando sobre o estado de seus homens feridos, parecia ter se esquecido de seus próprios ferimentos de guerra debaixo daqueles escombros. 

Não era para ter ido na missão de resgate, como médica meu dever era cuidar dos pacientes, entretanto, algo dentro de mim me fez quebrar as regras e me infiltrar no grupo de resgate, enfrentando o medo e a possibilidade de mais um ataque inimigo. E minha ousadia certamente havia sido um chamado divino, pois após mais de três horas de buscas, o tenente Ivanov já havia desistido de encontrar seu amigo, nos ordenando retornar a base médica. Foi quando encontrei o capitão Kozel, debaixo de alguns escombros, com apenas o dedo indicador aparecendo. 

Depois de semanas vendo pessoas morrendo e tantas outras sendo mutiladas para manter suas vidas, tive que segurar minhas emoções quando eu retirei uma das placas e finalmente seus olhos azuis puderam ver meu rosto.

— Te achei capitão… — disse abrindo um reconfortante sorriso singelo para ele — Vamos te levar para casa.
— Eu já estou em casa… — sussurrou ele, sua respiração estava fraca e cansada.
— Não, mas logo estará, eu não o deixarei morrer aqui, não hoje, não no meu turno. — eu me virei para trás e remexi minha bolsa de apoio para aferir sua pressão.

Seu estado físico não era convincente e me preocupou um pouco. Gritei por ajuda e logo os soldados apareceram juntamente com o tenente para me ajudar. Retiramos o restante dos escombros, para que eu pudesse prestar os primeiros socorros com precisão e agilidade, então deslocamos o capitão para a base, que passou a maior parte do caminho inconsciente. 

A partir daquele momento, dividi minha atenção entre os feridos considerados menos graves da ala B, e na recuperação do meu novo paciente, capitão Kozel.

— Como ele está, doutora Miller? — perguntou o Tenente, com o olhar preocupado.
— Ainda inconsciente, mas tenho a convicção que acordará em breve. — noticiei a ele, tentando lhe transmitir segurança — Seu corpo está respondendo bem aos estímulos e felizmente a ferida na perna não foi tão grave quanto parecia, não precisou de amputar, entretanto ele terá que conviver com alguns pinos no joelho, pois afetou as cartilagens.
— O que importa é que está bem e vai se recuperar. — disse ele, respirando aliviado — Em breve o capitão Mediev chegará a base para assumir o lugar do capitão Kozel.

Era nítido o esgotamento no rosto do tenente Ivanov que precisou assumir um posto em que não estava preparado e menos ainda treinado. Mas conseguia ver o quanto se esforçava para manter o ânimo e a motivação dos soldados, em sua responsabilidade. Mais dias se passaram, e ao final da tarde eu sempre me sentava ao lado da maca improvisada para ler um trecho do meu livro do momento para o capitão. Se era do gosto daquele cavalheiro chamado , eu não sabia, mas um pouco de O conde de Monte Cristo, sempre era uma boa pedida para passar o tempo. 

— Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem… — um sussurro escapou de sua boca, me fazendo parar a leitura.
— O que disse?! — eu fechei de imediato o livro e voltei minha total atenção para ele, já conferindo os aparelhos que demonstraram seu avanço — Capitão Kozel? Consegue me entender?
— Seu sotaque americano é inconfundível. — falou o ucraniano.

Eu ri baixo, discretamente e novamente o olhei com serenidade.

— O que disse quando acordou? — indaguei a ele, curiosa.
— Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem. — repetiu ele, com mais clareza — Era o que meu pai sempre dizia… E ainda assim, eu escolhi ser um militar como ele.
— Então, lembra-se de quem é? — perguntei, ao encostar meu estetoscópio em seu pulso para verificar com mais precisão, nunca confiava totalmente nas máquinas.
— Capitão Kozel, nascido no hospital universitário de Kiev, formado em engenharia mecânica pelas forças armadas da Ucrânia e… — ele foi falando pausadamente e com certa dificuldade. 
— Ok, eu já entendi, senhor. — disse batendo continência com suavidade e meio brincando — Seus soldados ficarão felizes em saber que acordou.
— Obrigado, por ter me achado. — seu olhar azul abriu mais, mantendo fixamente em mim.

O que me causou certo constrangimento pela profundidade.

— Tem sido uma longa jornada para seu país, entre altos e baixos, o que importa é que ainda está vivo. — disse com segurança em minhas palavras — Agora descanse, ainda tem uma guerra para vencer e seu país para servir.

Mantive meu sorriso singelo a ele, sentindo suas mãos segurarem a minha, em um aperto mediano de agradecimento.

Tem sido uma longa jornada
Passamos por altos e baixos
Mas ainda estamos aqui
Ainda estamos vivos.
- Don't Care About Me / GOT7

Legado: O que fazemos na vida, ecoa na eternidade. - O Gladiador”
- Pâms




FIM.




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